O Ministério Público do Rio Grande do Sul denunciou nesta terça-feira (2), em Santa Maria, os nomes dos responsáveis pelo incêndio na boate Kiss, que resultou na morte de 241 pessoas. Oito pessoas foram acusadas criminalmente, quatro delas por homicídio doloso qualificado e 623 tentativas de homicídio, duas por fraude processual e duas por falso testemunho.
Foram acusados de homicídio doloso qualificado, na modalidade de dolo eventual (quando o sujeito assume o risco de produzir o resultado, mesmo sem intenção), os dois sócio-proprietários da boate, Elissandro Spohr e Mauro Hoffman, e os dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão.
Os quatro envolvidos já se encontram presos preventivamente desde 28 de janeiro, o dia seguinte ao incêndio na casa noturna. Caso a denúncia seja aceita pela Justiça, eles irão à júri popular. A intenção dos promotores que trabalharam no caso é manter o caso em Santa Maria.
“Não importa quantas manobras sejam feitas (pelos advogados de defesa), nós queremos que a sociedade de Santa Maria julgue a tragédia de Santa Maria”, afirmou o coordenador do Centro de Apoio Criminal do MP, promotor David Medina.
Segundo o promotor, o dolo eventual dessas quatro pessoas ficou amplamente comprovado durante as investigações da polícia e análise do MP. Na avaliação do órgão, tanto dos proprietários da boate quando dos integrantes da banda tinham conhecimento do risco a que submeteram o público ou poderiam prever o resultado, mas não agiram ou foram indiferentes.
“Lá dentro, havia um show pirotécnico. Havia uso de fogo em um local totalmente inapropriado para receber qualquer tipo de chama. Havia madeira, havia cortinas e, infelizmente, havia pessoas. E mais: havia uma espuma altamente inflamável usada no revestimento do palco”, enumerou Medina.
“Tanto os músicos tinham consciência disso (do poder do fogo de artifício), que o acionaram usando uma luva. A Kiss era um verdadeiro labirinto. Estava superlotada, não havia indicação adequada de sua saída, não haviam saídas adequadas, além de serem pequenas e terem barras ao seu redor, que impediram a passagem das pessoas”, acrescentou o promotor.
Também foram denunciados por fraude processual dois bombeiros: o major Gerson da Rosa Pereira e o sargento Renan Severo Berleze. Segundo o inquérito policial, os dois adulteraram o arquivo onde estava guardada a documentação referente à boate Kiss no Corpo de Bombeiros, incluindo laudos técnicos nos dias seguintes ao incêndio.
Outras duas pessoas foram denunciadas por falso testemunho: Elton Cristiano Uroda (ex-sócio da Kiss) e Volmir Astor Panzer, contador de um empresa de propriedade da família de Kiko Spohr. O nome deste último não foi apontado pelo inquérito policial, mas os promotores entenderam que ele tentou omitir quem era, de fato, sócio investidor da boate.
MP muda enquadramento, pede mais investigações e arquivamentos
Essa não foi a única mudança do MP em relação ao inquérito de 13 mil páginas entregue pela Polícia Civil no dia 22 de março, que apontou 28 responsáveis pela tragédia e indiciou 16 criminalmente. Os promotores desqualificaram o indiciamento dos bombeiros Gilson Martins Dias e Vagner Guimarães Coelho de homicídio doloso para homicídio culposo. Os dois foram responsáveis pela última vistoria da boate. O caso deles será analisado pela Justiça Militar, juntamente com o de outros bombeiros.
“Não conseguimos detectar indicativos de dolo, seja ele direto ou eventual, na conduta dos dois bombeiros vistoriadores. Se houver algum enquadramento, será por crime militar. Serão apreciados pela Justiça Militar, assim, por demais apontamentos junto a outros bombeiros apontados no inquérito”, explicou o promotor Joel Dutra.
O MP também pediu novas investigações à polícia sobre o envolvimento de Marlene Teresinha Callegaro e Ângela Aurelia Callegaro (mãe e irmã de Kiko Sphor, respectivamente, e proprietárias da boate no papel), Miguel Caetano Passini (secretário de Mobilidade Urbana) e Beloyannes Orengo de Pietro Júnior (chefe da fiscalização da secretaria de Mobilidade Urbana). As duas primeiras haviam sido indiciadas por homicídio doloso e os dois últimos, por homicídio culposo.
Por fim, a promotoria pediu o arquivamento das investigações sobre Ricardo de Castro Pasche (gerente da Kiss), Luiz Alberto Carvalho Junior (secretário do Meio Ambiente) e Marcus Vinicius Bittencourt Biermann (funcionário da Secretaria de Finanças que emitiu o Alvará de Localização). No entendimento do MP, Ricardo não tinha poder decisório na administração da boate, enquanto os outros dois não tinham poder ou permitiram irregularidades sem relação com a tragédia.
As próximas etapas dos processos na Justiça
Após apresentarem as conclusões à imprensa, os promotores entregaram as denúncias ao juiz da 1ª Vara Criminal de Santa Maria, Ulysses Fonseca Louzada. Questionado pela imprensa, ele evitou se manifestar sobre as denúncias do MP antes de receber as manifestações dos advogados de defesa. "Não sei o que vai vir da parte deles, por isso ainda não posso falar nada. O que venho dizendo há algum tempo é que é um processo importante", destacou o juiz.
A peça dá início ao processo criminal na Justiça. A partir de agora, será estabelecido o prazo de 10 dias para as defesas se manifestarem. Depois disso, o juiz decide se aceita ou não a denúncia contra todos ou parte dos acusados. Se a resposta for sim, eles viram réus. Então começa a frase de instrução do processo, com audiências para o depoimento de testemunhas, peritos, réus, etc.
Conforme o MP, nesse primeiro momento foram feitas apenas as denúncias relativas aos envolvidos diretamente na tragédia. As eventuais ações sobre improbidade administrativa vão ser apresentadas em um segundo momento, assim como as possíveis denúncias contra os bombeiros. Quanto ao prefeito de Santa Maria, a decisão sobre a denúncia cabe ao Procurador-Geral de Justiça, em Porto Alegre.
Daqui por diante, os apontamentos da polícia em relação a indícios de crimes cometidos pelos bombeiros serão analisados pelos promotores Joel Dutra e Cesar Augusto Carlan. A Justiça Militar receberá as conclusões do MP e decidirá, após a conclusão de um Inquérito Policial Militar (IPM) em andamento se processa ou não os militares.
Já o caso do prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer, só pode ser analisado pela 4º Câmara do Tribunal de Justiça (TJ-RS), em Porto Alegre, já que ele tem foro privilegiado. Caberá ao órgão decidir se abrirá ou não um processo criminal contra o político, responsabilizado pela polícia por improbidade administrativa e homicídio culposo. Segundo o MP, o TJ-RS informou nesta terça-feira que ainda não recebeu a cópia do inquérito.